quinta-feira, 23 de junho de 2011



Perdeu, mais velho

Para Adilson Viana (Xará), Alex Brazil, Angélica Cavalcanti, Betinho da Moca, Cássia Ferreira, Dornelles, Ednaldo Santos, Eduardo Silva de Souza, Gordack, Marco Bomfim, Nelsinho Pacheco, Ricardo Villa Verde, Robert Sachsse, Sara Mazuco, Sérgio Buá, Sil Freitas e todos os boêmios e boêmias, que sabem captar o verdadeiro sentido da noite.

Ele já sabia de tudo... ou quase tudo. Tinha ouvido falarmuito e lido em jornais e revistas daqui e de fora. Além disso, nas últimas semanas havia se debruçado horas seguidas sobre o computador, pesquisando insistentemente na internet. Logo, a violência do Rio de Janeiro não era novidade pra ele.

Depois, quem iria mexer com um homem público de prestígio internacional, tão bem relacionado com figuras proeminentes do Brasil e do exterior?Um ato de violência contra ele – imaginava – seria um golpe contundente nas instituições. O sistema econômico ocidental, que tanto deve a ele, certamente se pronunciaria. “Isto, se a ONU não impuser sanções contra o país de origem do agressor” – voou na imaginação.

Já chegou ao Rio com o roteiro traçado. Primeiro passaria por Vargem Grande e outras áreas nobres de Jacarepaguá.Dali, seguiria para Barra da Tijuca, passando pelo Recreio e São Conrado; desceria a Niemeyer, sairia no Leblon e, então, visitaria os endereços nobres da Zona Sul, incluindo Laranjeiras e Cosme Velho.

Mas o roteiro não parava por aí. Examinando a agenda, constatou que tinha amigos, também, em algumas áreas da Tijuca, até o Grajaú. Pelo menos, era o que estava impresso em cor azul, no mapa da cidade. Em vermelho, tinham algumas zonas que deveria evitar – se possível, até – de passar por perto. Era uma tal de Rocinha e um tal de Vidigal; Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Maré, Macacos, Alemão, Guararapes, Serro-Corá... “My God,thise names are horrible!” – pensou em inglês, embora soubesse pensar em português, diferentemente de certas apresentadoras da TV brasileira.

Estava ainda cumprindo a primeira parte do programa: chegou à Barra. Quando alcançou a Avenida das Américas, o seu Rolex marcava duas e vinte da madrugada. O transito estava ótimo. Poucos carros na pista em direção à Zona Sul. Dava até pra seguir voando baixo, como pareciam estar, aliás, todos os poucos veículos que trafegavam por ali, àquela hora. E seguia, bon vivent, aproveitando aquela brisa, que lhe acariciava as faces coradas. Pareceu-lhe até que ouvia o som de uma canção, vindo de algum condomínio ao longe, cuja letra citava sua pessoa. Mas não deu muita atenção, porque, agora, passava por um trecho ermo da avenida, como outros que já havia ultrapassado, entre um conjunto de prédios e outro.

A certa altura, viu que oito carros estavam bloqueando as duas pistas, quatro de cada lado. Olhando melhor, percebeu que vários homens armados interceptavam o caminho. Já de longe, notou que dois deles tomaram a dianteira e, com as mãos, mandavam que parasse. Ele obedeceu, estacionando o seu veículo num recuo, cerca de 20 metros antes deles. Vários se encaminharam em sua direção, sempre apontando as armas.

Ficou mais tranqüilo, quando, observando seus trajes, viu que se tratava de uma guarnição da Polícia Federal, realizando uma blitz. Como não tinha nada a temer, desceu e riu pra eles o seu riso habitual.

- E então, rapazes, como vão as coisas? – perguntou, sacudindo a barriga.

Sem nada responder, todos os homens se acercaram dele e uma voz soturna anunciou:

- Perdeu, mais velho! Perdeu!

Ficou meio sem graça com a resposta, mas, ainda assim, falou em tom amigável:

- Bem, rapazes, vamos deixar de troça. Estamos todos a serviço da comunidade...

Não completou a frase, pois um berro sinistro ordenou:

- Cala a boca, coroa!

Ele calou, sem saber direito o que pensar. A mesma voz soturna foi direto ao assunto:

- Aí, coroa, me dá aqui a mão.

No que ele deu, o cara disse:

- Pra começar, vai perder o relógio.

Ao arrancá-lo do seu pulso, comentou com os parceiros mais próximos:

- Hum! É Rolex... legítimo. Eu sempre disse que esse velhote marcava um troco responsa – sorriu.

Enquanto isso, alguns deles passaram a bisbilhotar o seu veículo e até examinar nas mãos alguns objetos. Interrogado, outro respondeu:

- Muita muamba!.. Muamba da boa!..

Tentou relaxar, a fim de explicar a importância de cada uma daquelas coisas.

- Bem, eu não sei se vocês sabem, eu sou...

Splaft! A mão espalmada soou, deixando o seu rosto mais vermelho que de costume.

- Eu sei quem é você, sim, seu escroto. Só nunca tinha te visto assim, tão de perto – tornou a voz sinistra.

Lembrando do famigerado jeitinho brasileiro, ensaiou uma negociação.

- Olhe aqui, eu posso lhes dar a metade de tudo o que está aí e prometo não dizer nada a ninguém.

O dono da voz sinistra segurou-o pelo colarinho branco e, trazendo-o para junto de si, falou, respingando saliva em seu nariz:

- Tu ta de sacanagem, porra. Presta atenção, otário: pra que a gente quer essa merda de metade, se a gente tem a muamba toda na nossa mão? – e soltou-o com um empurrão contra o seu veículo.

A sinistra deu o comando:

- Vamos levar a porra toda.

Mas a soturna replicou:

- Esse velho é safado. Ele é capaz de dedurar a gente. Vamos deixar ele nu.

Achou que era demais e reagiu, pela primeira vez com firmeza:

- Aí, não. Vocês não podem fazer isso comigo... eu represento uma instituição...

E de novo foi interrompido pelo de voz sinistra, que lhe encostou o cano de uma pistola na cabeça.

- Deixa de falar merda, mais velho. Aí, tirem a roupa dele.

Sem mais forças e argumentos, cedeu. Lhe despiram dos pés à cabeça e entrouxaram suas vestes. Em vão pediu que lhe deixassem a cueca. E rapidamente ocuparam os veículos, inclusive o dele, saindo em disparada, cada grupo em direções opostas, cantando pneu, voando baixo.

Ele não tinha palavras – e eu também não tenho – para expressar o seu desapontamento. A cabeça rodava... os pensamentos se embaralhavam... Julgou ser necessário recorrer às leis brasileiras de proteção aos animais. Só que descartou a idéia. “Ora, se não protegem as pessoas!..”. Pensou! Pensou no que deveria fazer primeiro: sair dali o mais rápido possível. Mas, sair como? Assim, descalço até o pescoço? O que vão dizer as pessoas de bem, quando isso for divulgado na mídia? É, não tinha dúvida de que a mídia iria explorar o assunto com sensacionalismo. Afinal, ele era um grande vulto da moderna história ocidental e, agora, naquele estado: nu e despojado de seu veículo e de toda a mercadoria que trazia nele. Sim, porque sua imagem era conhecida em diversos países, mesmo naqueles que não visitava. Seu nome, pronunciado em muitos idiomas. Não se sabe até hoje porque ainda não virou marca patenteada pela Rede Globo, assim como o Criança Esperança.

- O que vão dizer as pessoas de bem, quando souberem disso? – refletiu.

Ah, as pessoas de bem! Quantas delas se mobilizariam, em diversos quadrantes do planeta, para ajudá-lo naquela hora de aflição?

Olhou em volta e teve a noção exata do quanto era ermo o trecho da Avenida das Américas, em que se achava. Quis sair à procura de um local mais movimentado, a fim de conseguir uma carona até a Delegacia. Mas desistiu, achando que seria melhor não expor tão completamente a sua nudez.

Vem um carro. Respirou profundamente aliviado e se posicionou bem à beira da pista, para que lhe vissem melhor. Mas como fazer sinal pro motorista, se estava com as mãos cruzadas sobre a genitália, como ficam os jogadores de futebol, na hora da cobrança de falta? O jeito foi ficar dando pulinhos no mesmo lugar, sinalizando que precisava de ajuda.

O carro conduzia duas jovens, tendo uma delas comentado:

- Você viu o que eu vi?

- Acho que vi, sim. Um velho maluco pulando sem roupa, escondendo o piru atrás das mãos?

Disse a primeira:

- Coitado, com aquela barriga, nem precisava usar as mãos pra esconder a coisa. A própria pança se encarregaria disso.

- Até porque, nem deve ser um piru – respondeu a outra. É, no máximo, um filhotinho de canarinho polaco. – riram muito.

Outro carro despontou. Ele não queria perder a oportunidade de ser visto. Desta vez, postou-se no centro da pista e abriu os braços, com tudo a mostra. Num golpe de direção, tão ágil quanto certeiro e arriscado, o motorista desviou-se dele, imprimiu mais velocidade ao veículo e saiu, cantando pneu, voando baixo.

Os ocupantes do carro formavam um casal bem posto na vida que, católicos fervorosos, se empenhavam, vez por outra, em zelar pela moral e os bons costumes, além de honrar as tradições. Ela comentou:

- Os criminosos estão sempre mudando suas táticas. Agora, que sabem que os menores já não comovem tanto, estão usando os idosos, naturalmente com problemas mentais, para nos fazer parar.

Ele nada disse à mulher, mas não se furtou a dizer tudo a uns PMs, que encontrou pouco mais adiante. Não demorou muito chegou uma guarnição, comandada por um sargento, à frente de um cabo e três soldados. Desceram da viatura e o comandante perguntou-lhe:

- O que é que tá pegando aí, meu chefe?

A vítima ficou na dúvida, se começaria pela narração dos fatos ou pela revelação da sua identidade. Ficou com a segunda opção e assim se apresentou aos policiais:

- Não sei se vocês já perceberam, mas eu sou Papai Noel... sim, eu sou Papai Noel e acabo de ser assaltado. Perdi meu trenó, com seis parelhas de renas, e mais: relógios, brinquedos, celulares e...

O cana não quis ouvir mais nada. Segurou-o pela barba branca e esbravejou:

- Tá pensando o que, coroa? Só porque já é terceira idade, pensa que pode zoar com a cara da polícia? Nessa época do ano, tem uma porrada de desocupados, assim como você, descolando uma prata com essa história, aqui nos shoppings da Barra.

Ele protestou:

- Não, senhor. Eu sou o autêntico. Os outros são uma representação de mim... uns impostores. Eu tenho documentos que comprovam isso. O meu passaporte...

- Onde está seu passaporte? – quis saber a autoridade.

- Pois é, os ladrões levaram junto com as minhas roupas.

O sargento, ainda agarrado à barba dele, sacudiu várias vezes a sua cabeça, pra um lado e pra outro.

- Escuta aqui, velhote safado, vou lhe conduzir à DP e tu vai contar essa história, lá pro delegado. Mas vou logo te avisando: tu vai ser recolhido aos costumes e autuado por atentado ao pudor.

Ir para a Delegacia era, talvez, a melhor coisa a fazer. Lá, falaria de suas origens e de sua descendência direta da linhagem de São Nicolau Taumaturgo, que teve início em Mira, na Turquia, onde ele foi arcebispo, durante o século 4. Aproveitaria a ocasião, para registrar a ocorrência... mas aí o sargento soltou sua barba e ordenou a um soldado:

- Abre lá a caçapa, pra jogar esse puto velho.

Na mesma hora, um outro soldado pegou-o pelo braço, levando-o para mais próximo da traseira da viatura. Mais uma vez ele esboçou um protesto:

- Vocês não podem fazer isso. Estão cometendo um equívoco, uma injustiça...

O cabo berrou:

- Cala a boca, filho da puta, e obedece ao sargento.

Aberta a porta da caçapa, ele viu o espaço exíguo que abrigaria o seu corpo volumoso. Com muito esforço, se encolheu o mais que pode para entrar. Ficou encalhado, impedindo que a porta fechasse completamente. Sempre gritando impropérios, o sargento decidiu “ajudá-lo”: com a coronha do fuzil socou seu corpo pra dentro, em três movimentos bruscos. A cada um deles, o velho gritava de dor:

- Hôôôôôô!.. Hôôôôôô!.. Hôôôôôô!..

23/11/2010

Eldemar de Souza

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Medo


Não tenham medo daqueles que matam o corpo e não podem matar a alma”. (Jesus Cristo Mateus 10.28)

Pr‘onde vocês vão?” – quis saber o motorista. “Para um festival de música” – respondeu Márjorie, exibindo o melhor do seu sorriso encantador. Percebi de pronto, que não era aquela a resposta que ele esperava e me antecipei, explicando que íamos para Anobom, em cujo estádio municipal haveria um festival de rock. O homem – bem como os seus dois ajudantes – examinou Márjorie de alto a baixo, sem a menor preocupação em ser discreto em respeito à minha presença. E depois, sentenciou: “Tô indo pra José Pedra, uma cidade bem antes, mas, se vocês quiserem...”. Olhou fixamente para o decote da blusa de Márjorie e prosseguiu: “Só que vão ter que viajar na carroceria, porque, aqui, na cabine...”. Não completou a frase, mas se fez entender indicando com um gesto de cabeça os dois companheiros de viagem. “Tudo bem” – respondi por mim e por ela.

Agora, se me permite, deixa-me falar um pouco de Márjorie. Era linda de cara e de corpo; de corpo e de alma. A pele morena e os cabelos levemente cacheados, formavam um conjunto perfeito com seus olhos verdes, sempre ágeis, como se quisessem captar todas as imagens disponíveis no ambiente a cada olhar. Não bastassem esses atrativos, a boca se destacava no rosto, em razão dos lábios carnudos, úmidos e naturalmente vermelhos, que se abariam num sorriso envolvente, exibindo dentes muito brancos, saudáveis e simétricos. O seu ar de fêmea fogosa, permanentemente no cio, fazia nossos amigos admitirem que ela havia me conquistado na cama, o que, aliás, não era mentira. Porém, o que quase ninguém acreditava é que foi o seu sorriso que me fez irremediavelmente apaixonado, desde o primeiro momento em que nos vimos, em um vernissage no Museu de Arte Moderna do Rio.

E olhe que eu ainda não falei do corpo. Ah, o corpo era um detalhe à parte. Muitas misses ou símbolos sexuais, que enfeitam capas e miolos de revistas masculinas, ficam-lhe a dever. Curvas e pernas perfeitas; seios e quadris proporcionais ao seu porte mediano. Se nos lugares em que chegava, trajando vestido ou calças compridas, fazia o maior sucesso, era na praia, de biquíni, que chamava a si todos os olhares e sofria toda a sorte de assédio. O verbo “sofrer”, talvez nem seja apropriado para este caso. É que Márjorie, com seu espírito elevado, não dava a menor importância aos elogios que a sua matéria suscitava. Não odiava o corpo, é verdade, como certas mulheres consideradas monumentos. Até porque, sua espiritualidade não permitia odiar aquilo que Deus lhe dera. Amava-se, sem idolatria ou culto à matéria, e era sensual por seus dotes naturais: nada de caras e bocas, para provocar a libido de quem quer que fosse.

Não poderia falar de Márjorie, sem destacar os seus dotes intelectuais. Formada em Ciências Sociais, falava fluentemente várias línguas, inclusive a alemã, que aprendera na adolescência, para ler Marx e Brecht no original. Durante a ditadura militar, engajou-se num grupo de resistência, logo desbaratado pela repressão. Com a morte e a prisão de muitos dos seus companheiros, ela desencantou-se com a luta armada e aderiu sem reservas ao movimento hippie, que florescia no Brasil, no final dos anos 60. Foi por essa época, que despertou para as coisas espirituais, quando passou a questionar o materialismo dialético e a autenticidade do laicato, num Estado oficialmente ateu. Seus ex-companheiros de luta, não entendiam tamanha mudança e achavam que ela havia enlouquecido, já que nos poucos encontros que manteve com eles, desde então, falou-lhes abertamente de suas experiências com a maconha e o LSD.

Já sei até o que você está pensando. O que uma mulher, com tantos atributos físico-intelecto-espirituais estava fazendo ao meu lado? Confesso que eu também refleti sobre isso, muitas vezes. Quer saber se eu tinha ciúmes? No princípio, sim; mas, com o tempo, me convenci de que era inteiramente correspondido na intensidade do meu amor, pois muitas foram as provas que ela me deu. Assim, passei a achar natural Márjorie ser olhada do jeito que a olhavam e assediada com tanta insistência. Só as cantadas grosseiras, que também não faltavam, é que me deixavam irritado. Mas isso, quando chegavam ao meu conhecimento, porque, normalmente, ela se utilizava de um jeito todo seu de descartar os chatos e os inconvenientes. Assim, acabei perdendo a insegurança, o medo de perdê-la para outro cara.

Tão logo subimos à carroceria, o motorista deu a partida, com um solavanco. Acomodamos nossas mochilas na parte da frente, junto à cabine, a fim de apoiar as costas, e sentamo-nos. A estrada era mal conservada, com uma só pista em mão dupla, praticamente desabitada em ambos os lados. Só de quando em quando, víamos uma casa, uma porteira de fazenda, um morador da localidade puxando um burro, montado numa bicicleta ou carregando um cesto na cabeça. Mesmo os outdoors, tão freqüentes nas rodovias, eram raros ali. A monotonia da paisagem tornou a viagem cansativa. Principalmente, com a chegada da noite, que não demorou. Agora, nem mesmo o cenário já descrito era possível perceber, em meio àquela escuridão, entrecortada, vez por outra, pelos faróis dos veículos que nos ultrapassavam ou trafegavam em sentido contrário. Exaustos, resolvemos deitar. Márjorie dormiu logo, mas eu permaneci acordado mais um tempo, contemplando o céu, que estava, a exemplo da estrada, escasso de luminosidade.

Poderia dizer, com boa margem de acerto, que apenas cinco estrelas eram perceptíveis aos olhos humanos naquela noite. Pelo menos, para quem se achava, como eu, observando o firmamento naquela estrada. Passei a observar uma a uma, tentando avaliar, a partir do seu próprio brilho, a distância que nos separava, no tempo e no espaço. Evidentemente que não cheguei a nenhuma conclusão quanto a isto, até porque sou completamente ignorante em Astronomia. Contudo, uma das estrelas chamou-me a atenção pela intensidade do seu foco, o que sugeria maior proximidade com a Terra que as demais. Fiquei longo tempo contemplando-a, buscando adivinhar a sua localização, em meio a não sei quantas galáxias, e me perguntando que tipo de influência ela poderia estar exercendo sobre o nosso planeta, naquele exato momento.

Cansado de estar deitado de costas, virei-me para o lado, abracei Márjorie com ternura e adormeci. Não sei se muitas horas ou poucos minutos depois, fui acordado por ela, que me chamava a atenção para a estranheza do lugar onde estávamos. Erguendo um pouco a cabeça, olhei por sobre a grade da carroceria e concordei. O caminhão estava estacionado numa rua estreita, semi-iluminada por umas poucas lâmpadas, instaladas na fachada de um prédio de aspecto piramidal. Em seguida, desembarcamos para obter informações sobre a nossa localização e a possibilidade de prosseguirmos ou não a viagem naquela carona.

Uma vez no solo, pudemos ver melhor: a rua seguia o padrão da rodovia por onde trafegamos nas últimas horas, ou seja, fora do alcance daquelas lâmpadas, tudo o mais era breu. Não se divisava nada, cerca de trinta metros além do prédio piramidal. A fachada do prédio era, na verdade, um imenso triângulo, sem porta ou janela, com uns 25 metros de base e sabe-se lá quantos metros de altura, já que o seu ápice perdia-se na escuridão, em direção ao céu. À frente do nosso caminhão, dois outros achavam-se estacionados, e enquanto observávamos o ambiente éramos observados por um grupo de homens à porta de uma birosca, entre os quais estavam o nosso motorista e seus dois ajudantes.

Aqui é José Pedra” – informou o motorista, acrescentando que dali voltaria ao ponto de partida e que, se quiséssemos, poderíamos pegar uma carona para Anobom na estrada por onde viemos, “que fica a uns três quilômetros daqui”. Disse mais: “Vou carregar o caminhão lá pela madrugada e só então volto a tomar a rodovia”. Enquanto dialogávamos, pude perceber os olhares que os circunstantes lançavam para Márjorie. Não sei de onde, surgiu de repente um grupo de cinco meninos, que, de forma provocativa, pelo menos para o meu entendimento, passaram a nos rodear cantando: “Ó Inácio, ó Inácio/mulher parida não come/ó Inácio, ó Inácio/farinha no mesmo dia...”.

A proposta de Márjorie foi perfeita. Pegaríamos nossa bagagem e marcharíamos para a estrada, imediatamente, apesar da escuridão e do nosso total desconhecimento do terreno. Voltei, então, à carroceria, peguei as mochilas e passei para ela, que as acomodou junto ao muro do prédio. Quando nos preparávamos para sair, um homem moreno, com cerca de quarenta anos, aproximou-se de nós e quis saber de onde vínhamos e para aonde íamos. Satisfeita a sua curiosidade, ele nos perguntou se não queríamos tomar uma garapa. “Garapa?!?” – estranhou minha mulher, sulista arraigada, a quem expliquei que se tratava de algum suco, caldo-de-cana ou coisa assim. Ela declinou do convite, com a minha anuência, mas o homem insistiu. Silêncio da parte dela e dúvida, da minha. Convite reiterado, achei por bem aceitar, para não ser grosseiro. Quis levar a bagagem conosco, mas ele disse que não precisava: “Aqui, ninguém mexe” – garantiu.

No momento seguinte, o homem, que disse chamar-se Raimundo, desatou o cinto, liberando um arco de arame, em que se achavam enfileiradas inúmeras chaves. Destas, separou uma, com a qual abriu o portão de acesso ao prédio, aonde funcionava, segundo ele, uma empresa de beneficiamento de calcário. Tão logo entramos, o portão foi novamente trancado à chave, procedimento que se repetiu, depois que ultrapassamos uma porta de grades, revestida com chapas de aço. Embora estranhando a atitude do nosso anfitrião, só passei a desconfiar do seu zelo extremado com a segurança do local, quando teve o mesmo cuidado no próximo portão. Este, por sinal, além da fechadura, ainda contava com o reforço de uma corrente com cadeado.

Estávamos, agora, num longo corredor, igualmente mal iluminado. Enquanto o homem dava várias voltas na corrente, olhei para Márjorie e não gostei da expressão apreensiva do seu rosto. Tive ímpeto de desistir da garapa, mas considerei que Raimundo não concordaria. Além disso, experiências anteriores haviam me ensinado, que devemos evitar, o quanto possível, a demonstração do nosso medo. Por isso, quando o cicerone seguiu em frente, resolvi acompanhá-lo.A fim de estimular minha mulher a fazer o mesmo, tomei-a pela mão, que estava úmida de suor. Se até aqui eu tinha alguma dúvida de que algo desagradável nos esperava, esta dissipou-se em segundos.

O corredor terminava no topo de uma escadaria de madeira, que dava acesso ao refeitório dos operários. Naquele momento, cerca de oito horas da noite, não menos que uns cinqüenta homens jantavam, ao mesmo tempo em que conversavam animadamente. As imagens daqueles peões comendo lá em baixo, na maior algazarra, nos fez parar instintivamente. E a nossa presença no alto da escada produziu reação semelhante, ou seja, todos pararam de comer e falar e ficaram nos olhando. Por alguns segundos, não se ouvia nenhum ruído, a não ser o do motor da velha geladeira comercial, instalada a um canto do amplo salão. A mão de Márjorie, de tão suada, tornou-se escorregadia, a ponto de eu não conseguir mantê-la dentro da minha mão fechada. Olhei em volta, e não vi mais o homem que nos trouxera até ali.

Em dado momento, um dos peões cochichou com os companheiros de sua mesa, e estes desataram a rir. O riso deles foi contagiando os demais, e em pouco tempo todos riam. Um riso nervoso, meio caricatural, um tanto forçado da parte de alguns, foi evoluindo... evoluindo... até explodir numa gargalhada uníssona, estrepitosa. Estávamos petrificados e assim permanecemos, mesmo quando alguns operários, levantando-se, caminharam lentamente em nossa direção. Enquanto venciam cada um dos degraus, comecei a imaginar o que iria acontecer. Eles tentariam estuprar a minha Márjorie, e eu – diferentemente do levita que entregou a sua mulher aos homens de Gibeá (Juízes 19.22-28) – tentaria impedir que isto acontecesse, mesmo com o sacrifício da própria vida.

De repente, o melhor de mim, que se dispunha a morrer em defesa da mulher amada, entrou em luta contra um sentimento mesquinho, segundo o qual não valeria a pena o sacrifício. Afinal, minha morte não iria demovê-los dos seus maus intentos, e ela sofreria muito mais, quando tudo acabasse, se não pudesse contar com o meu apoio moral e psicológico, tão necessário à superação do trauma. Imobilizado como estava, acredito que só interiormente eu tenha sacudido a cabeça, para espantar esses pensamentos. Mas não o consegui. E se por acaso ela gostasse de ser violentada? Quem sabe se toda aquela sensualidade, que eu via como algo natural em Márjorie, não escondia um desejo latente de ser penetrada por vários homens, numa noite de orgia?

Lembro-me que engoli em seco, quando percebi que alguns deles já haviam alcançado o degrau imediatamente inferior ao patamar em que estávamos. Márjorie conseguiu quebrar a nossa imobilidade, correndo para trás de mim, buscando proteger-se. Pensei em recorrer a um argumento tolo: lembrá-los de que sexo após as refeições costuma ser fatal, mas desisti, com uma ponta de vergonha pela idéia ridícula. Um deles me empurrou violentamente para um lado, me desequilibrando. Ao cair no chão, deixei Márjorie completamente exposta. E logo, o que me empurrou segurou seu queixo com força, trazendo-a para junto de si, ao mesmo tempo em que se preparava para beijá-la. Antes que sua boca tocasse os lábios dela, levantei-me, parti pra cima dele e vi, com espanto, que ele se transformara em outro homem.

Creio que a transfiguração tenha provocado em mim um estado de confusão mental, que não me deixava mais discernir quem era quem, em meio àquela balbúrdia. Mesmo assim, vi quando dois deles tomaram Márjorie pelos pulsos e tornozelos e começaram a descer a escada. Tentei romper a barreira que os demais peões formaram para me interceptar, a fim de tirar minha mulher das mãos daqueles monstros. Mas, aí, ouvi alguém gritar: “Tá aqui a ‘zagaia! Tá aqui a ‘zagaia!” E abriram caminho, para que passasse um indivíduo, portando um instrumento metálico semelhante a um garfo de dois dentes, com cabo comprido de madeira. Ainda com a mente embotada, não saí do lugar, mesmo quando o agressor investiu contra o meu peito. O máximo que consegui, foi proteger a região torácica com as mãos, sendo ambas perfuradas pela arma pontiaguda.

Mal tive tempo de olhar minhas mãos ensangüentadas, quando um outro indivíduo tomou emprestada a ‘zagaia e cravou-a em meus dois pés, que ficaram presos ao chão. A força com que as pontas do bidente penetraram no soalho fez com que seu cabo reverberasse, dando-me sucessivas pancadas na testa e no nariz, que também começaram a sangrar. Em seguida, fui deixado só, no patamar, e todos desceram para o refeitório, onde Márjorie era preparada para servir de repasto sexual àquela turba ensandecida. Difícil descrever a angústia de ver a minha amada jogada sobre uma das mesas, se debatendo para evitar que a despissem. Tentei desprender a arma do chão, para liberar meus pés, mas os ferimentos das mãos impediam. Além da dor excessiva, o sangue tornava o cabo de madeira escorregadio.

Um outro homem emergiu daquele festim medieval e veio a mim. Olhou-me detidamente com expressão piedosa, sacudiu a cabeça para ambos os lados e disse: “Isto não se faz”. Na seqüência, despregou a ‘zagaia do chão, soltando os meus pés. Ainda em silêncio, mostrou-me com um gesto a outra extremidade do cabo da arma, também pontiaguda. Ato contínuo, cravou aquele estoque no meu lado esquerdo, sob as costelas, tornou a fincar o bidente no soalho e voltou para junto dos seus companheiros.

Fiquei alguns instantes por ali, observando meu corpo estrepado naquele pau de ponta pra cima. Um grito lancinante (que reconheci como sendo emitido por Márjorie) cortou o ar. Comecei, então, a forçar o cabo da ‘zagaia para baixo, ao mesmo tempo em que impulsionava meu corpo para o alto. Com espanto, verifiquei que as mãos já não doíam, o que facilitou a tarefa de desprender-me daquele estoque. Uma vez livre, me inteirei do que se passava no refeitório. Aglomerados em volta da mesa, os peões cantavam e batiam palmas, num clima festivo:

“...Ó Inácio, ó Inácio

pois se comê ela morre

ó Inácio, ó Inácio

e seu filho ela não cria.

Mas se não fosse os homi

as muleres não paria...”

Não, eu não queria acreditar no que meus olhos viam, mas era a pura verdade. Em meio àquela farra, aquele tributo à barbárie, à selvageria, Márjori levantou-se e pôs-se a dançar, nua sobre a mesa, para o gáudio dos insensatos, que a aplaudiam freneticamente. No primeiro momento, ela estava de costas para mim, rebolando as ancas empinadas e girando a calcinha enfiada no dedo

indicador da mão direita. Depois, girou sobre os pés descalços, exibindo um frontal de causar impacto, em razão do brilho que emanava do seu corpo, através de cinco estrelas, assim dispostas: duas sobre os olhos, outras duas sobre os mamilos e a maior delas cobria-lhe a vagina. “Ah, menos mal – pensei -, pois assim esses devassos não têm o prazer de apreciar a sua nudez completa”.

Do patamar onde eu estava, tentei dizer algo para a minha mulher, mas não conseguia emitir nenhum som, por mais que as palavras se formassem em minha boca. E mesmo que eu conseguisse falar, seria ouvido naquele ambiente estrepitoso? Mais ainda: ocupada como estava em entreter aqueles abutres, ela estaria a fim de me escutar? Difícil saber. Mesmo assim, continuei tentando, até que consegui bradar seu nome com tal volume de voz, que não só me fiz ouvir, como impus o mais completo silêncio ao local. Desci as escadas correndo ao encontro de Márjorie e ajudei-a a descer da mesa. Ela estava inteiramente vestida, com a mesma roupa, aliás, que estivera durante toda a viagem. Abraçamo-nos e beijamo-nos longamente, aproveitando a ausência de terceiros, pois o refeitório estava vazio. A bem da verdade, quase vazio, pois, ao virarmo-nos deparamos com Raimundo ao pé da escada. Ao seu lado, um enorme caldeirão, e com a mão estendida ele nos oferecia duas canecas de suco de caju, geladíssimo.

A primeira caneca, bebemos quase que de um só fôlego; a segunda e a terceira, mais lentamente; às duas últimas, nos declaramos satisfeitos. Raimundo sorriu e, em silêncio, retomou o caminho que nos levaria de volta à rua, tendo sempre o cuidado de trancar cada porta por onde passávamos. Uma vez fora da empresa, vimos que tudo estava exatamente como havíamos deixado. Os homens conversando à porta da birosca, os três caminhões estacionados em fila indiana, os cinco meninos brincando e as nossas mochilas encostadas ao muro. Quando passamos pelos meninos, percebi que nos olhavam com ar zombeteiro, e ouvi dois deles fazerem comentários acerca dos peitos de Márjorie, tendo o mais velho falado, entre dentes: “Eu é que se dei melhor, tava bem na priquita”.

De posse da nossa bagagem, demos início à caminhada de retorno à rodovia. Não foram necessários muitos passos, para que nos embrenhássemos na escuridão, saindo do alcance da visão de todos. Porém, mesmo à distância, dava para ouvir os meninos cantando:

“...Ó Inácio, ó Inácio

e o seu filho ela não cria.

Se não fosse as muleres

Os homi não fazia...”.

Abril de 2003

Medo


Não tenham medo daqueles que matam o corpo e não podem matar a alma”. (Jesus Cristo Mateus 10.28)

Pr‘onde vocês vão?” – quis saber o motorista. “Para um festival de música” – respondeu Márjorie, exibindo o melhor do seu sorriso encantador. Percebi de pronto, que não era aquela a resposta que ele esperava e me antecipei, explicando que íamos para Anobom, em cujo estádio municipal haveria um festival de rock. O homem – bem como os seus dois ajudantes – examinou Márjorie de alto a baixo, sem a menor preocupação em ser discreto em respeito à minha presença. E depois, sentenciou: “Tô indo pra José Pedra, uma cidade bem antes, mas, se vocês quiserem...”. Olhou fixamente para o decote da blusa de Márjorie e prosseguiu: “Só que vão ter que viajar na carroceria, porque, aqui, na cabine...”. Não completou a frase, mas se fez entender indicando com um gesto de cabeça os dois companheiros de viagem. “Tudo bem” – respondi por mim e por ela.

Agora, se me permite, deixa-me falar um pouco de Márjorie. Era linda de cara e de corpo; de corpo e de alma. A pele morena e os cabelos levemente cacheados, formavam um conjunto perfeito com seus olhos verdes, sempre ágeis, como se quisessem captar todas as imagens disponíveis no ambiente a cada olhar. Não bastassem esses atrativos, a boca se destacava no rosto, em razão dos lábios carnudos, úmidos e naturalmente vermelhos, que se abariam num sorriso envolvente, exibindo dentes muito brancos, saudáveis e simétricos. O seu ar de fêmea fogosa, permanentemente no cio, fazia nossos amigos admitirem que ela havia me conquistado na cama, o que, aliás, não era mentira. Porém, o que quase ninguém acreditava é que foi o seu sorriso que me fez irremediavelmente apaixonado, desde o primeiro momento em que nos vimos, em um vernissage no Museu de Arte Moderna do Rio.

E olhe que eu ainda não falei do corpo. Ah, o corpo era um detalhe à parte. Muitas misses ou símbolos sexuais, que enfeitam capas e miolos de revistas masculinas, ficam-lhe a dever. Curvas e pernas perfeitas; seios e quadris proporcionais ao seu porte mediano. Se nos lugares em que chegava, trajando vestido ou calças compridas, fazia o maior sucesso, era na praia, de biquíni, que chamava a si todos os olhares e sofria toda a sorte de assédio. O verbo “sofrer”, talvez nem seja apropriado para este caso. É que Márjorie, com seu espírito elevado, não dava a menor importância aos elogios que a sua matéria suscitava. Não odiava o corpo, é verdade, como certas mulheres consideradas monumentos. Até porque, sua espiritualidade não permitia odiar aquilo que Deus lhe dera. Amava-se, sem idolatria ou culto à matéria, e era sensual por seus dotes naturais: nada de caras e bocas, para provocar a libido de quem quer que fosse.

Não poderia falar de Márjorie, sem destacar os seus dotes intelectuais. Formada em Ciências Sociais, falava fluentemente várias línguas, inclusive a alemã, que aprendera na adolescência, para ler Marx e Brecht no original. Durante a ditadura militar, engajou-se num grupo de resistência, logo desbaratado pela repressão. Com a morte e a prisão de muitos dos seus companheiros, ela desencantou-se com a luta armada e aderiu sem reservas ao movimento hippie, que florescia no Brasil, no final dos anos 60. Foi por essa época, que despertou para as coisas espirituais, quando passou a questionar o materialismo dialético e a autenticidade do laicato, num Estado oficialmente ateu. Seus ex-companheiros de luta, não entendiam tamanha mudança e achavam que ela havia enlouquecido, já que nos poucos encontros que manteve com eles, desde então, falou-lhes abertamente de suas experiências com a maconha e o LSD.

Já sei até o que você está pensando. O que uma mulher, com tantos atributos físico-intelecto-espirituais estava fazendo ao meu lado? Confesso que eu também refleti sobre isso, muitas vezes. Quer saber se eu tinha ciúmes? No princípio, sim; mas, com o tempo, me convenci de que era inteiramente correspondido na intensidade do meu amor, pois muitas foram as provas que ela me deu. Assim, passei a achar natural Márjorie ser olhada do jeito que a olhavam e assediada com tanta insistência. Só as cantadas grosseiras, que também não faltavam, é que me deixavam irritado. Mas isso, quando chegavam ao meu conhecimento, porque, normalmente, ela se utilizava de um jeito todo seu de descartar os chatos e os inconvenientes. Assim, acabei perdendo a insegurança, o medo de perdê-la para outro cara.

Tão logo subimos à carroceria, o motorista deu a partida, com um solavanco. Acomodamos nossas mochilas na parte da frente, junto à cabine, a fim de apoiar as costas, e sentamo-nos. A estrada era mal conservada, com uma só pista em mão dupla, praticamente desabitada em ambos os lados. Só de quando em quando, víamos uma casa, uma porteira de fazenda, um morador da localidade puxando um burro, montado numa bicicleta ou carregando um cesto na cabeça. Mesmo os outdoors, tão freqüentes nas rodovias, eram raros ali. A monotonia da paisagem tornou a viagem cansativa. Principalmente, com a chegada da noite, que não demorou. Agora, nem mesmo o cenário já descrito era possível perceber, em meio àquela escuridão, entrecortada, vez por outra, pelos faróis dos veículos que nos ultrapassavam ou trafegavam em sentido contrário. Exaustos, resolvemos deitar. Márjorie dormiu logo, mas eu permaneci acordado mais um tempo, contemplando o céu, que estava, a exemplo da estrada, escasso de luminosidade.

Poderia dizer, com boa margem de acerto, que apenas cinco estrelas eram perceptíveis aos olhos humanos naquela noite. Pelo menos, para quem se achava, como eu, observando o firmamento naquela estrada. Passei a observar uma a uma, tentando avaliar, a partir do seu próprio brilho, a distância que nos separava, no tempo e no espaço. Evidentemente que não cheguei a nenhuma conclusão quanto a isto, até porque sou completamente ignorante em Astronomia. Contudo, uma das estrelas chamou-me a atenção pela intensidade do seu foco, o que sugeria maior proximidade com a Terra que as demais. Fiquei longo tempo contemplando-a, buscando adivinhar a sua localização, em meio a não sei quantas galáxias, e me perguntando que tipo de influência ela poderia estar exercendo sobre o nosso planeta, naquele exato momento.

Cansado de estar deitado de costas, virei-me para o lado, abracei Márjorie com ternura e adormeci. Não sei se muitas horas ou poucos minutos depois, fui acordado por ela, que me chamava a atenção para a estranheza do lugar onde estávamos. Erguendo um pouco a cabeça, olhei por sobre a grade da carroceria e concordei. O caminhão estava estacionado numa rua estreita, semi-iluminada por umas poucas lâmpadas, instaladas na fachada de um prédio de aspecto piramidal. Em seguida, desembarcamos para obter informações sobre a nossa localização e a possibilidade de prosseguirmos ou não a viagem naquela carona.

Uma vez no solo, pudemos ver melhor: a rua seguia o padrão da rodovia por onde trafegamos nas últimas horas, ou seja, fora do alcance daquelas lâmpadas, tudo o mais era breu. Não se divisava nada, cerca de trinta metros além do prédio piramidal. A fachada do prédio era, na verdade, um imenso triângulo, sem porta ou janela, com uns 25 metros de base e sabe-se lá quantos metros de altura, já que o seu ápice perdia-se na escuridão, em direção ao céu. À frente do nosso caminhão, dois outros achavam-se estacionados, e enquanto observávamos o ambiente éramos observados por um grupo de homens à porta de uma birosca, entre os quais estavam o nosso motorista e seus dois ajudantes.

Aqui é José Pedra” – informou o motorista, acrescentando que dali voltaria ao ponto de partida e que, se quiséssemos, poderíamos pegar uma carona para Anobom na estrada por onde viemos, “que fica a uns três quilômetros daqui”. Disse mais: “Vou carregar o caminhão lá pela madrugada e só então volto a tomar a rodovia”. Enquanto dialogávamos, pude perceber os olhares que os circunstantes lançavam para Márjorie. Não sei de onde, surgiu de repente um grupo de cinco meninos, que, de forma provocativa, pelo menos para o meu entendimento, passaram a nos rodear cantando: “Ó Inácio, ó Inácio/mulher parida não come/ó Inácio, ó Inácio/farinha no mesmo dia...”.

A proposta de Márjorie foi perfeita. Pegaríamos nossa bagagem e marcharíamos para a estrada, imediatamente, apesar da escuridão e do nosso total desconhecimento do terreno. Voltei, então, à carroceria, peguei as mochilas e passei para ela, que as acomodou junto ao muro do prédio. Quando nos preparávamos para sair, um homem moreno, com cerca de quarenta anos, aproximou-se de nós e quis saber de onde vínhamos e para aonde íamos. Satisfeita a sua curiosidade, ele nos perguntou se não queríamos tomar uma garapa. “Garapa?!?” – estranhou minha mulher, sulista arraigada, a quem expliquei que se tratava de algum suco, caldo-de-cana ou coisa assim. Ela declinou do convite, com a minha anuência, mas o homem insistiu. Silêncio da parte dela e dúvida, da minha. Convite reiterado, achei por bem aceitar, para não ser grosseiro. Quis levar a bagagem conosco, mas ele disse que não precisava: “Aqui, ninguém mexe” – garantiu.

No momento seguinte, o homem, que disse chamar-se Raimundo, desatou o cinto, liberando um arco de arame, em que se achavam enfileiradas inúmeras chaves. Destas, separou uma, com a qual abriu o portão de acesso ao prédio, aonde funcionava, segundo ele, uma empresa de beneficiamento de calcário. Tão logo entramos, o portão foi novamente trancado à chave, procedimento que se repetiu, depois que ultrapassamos uma porta de grades, revestida com chapas de aço. Embora estranhando a atitude do nosso anfitrião, só passei a desconfiar do seu zelo extremado com a segurança do local, quando teve o mesmo cuidado no próximo portão. Este, por sinal, além da fechadura, ainda contava com o reforço de uma corrente com cadeado.

Estávamos, agora, num longo corredor, igualmente mal iluminado. Enquanto o homem dava várias voltas na corrente, olhei para Márjorie e não gostei da expressão apreensiva do seu rosto. Tive ímpeto de desistir da garapa, mas considerei que Raimundo não concordaria. Além disso, experiências anteriores haviam me ensinado, que devemos evitar, o quanto possível, a demonstração do nosso medo. Por isso, quando o cicerone seguiu em frente, resolvi acompanhá-lo.A fim de estimular minha mulher a fazer o mesmo, tomei-a pela mão, que estava úmida de suor. Se até aqui eu tinha alguma dúvida de que algo desagradável nos esperava, esta dissipou-se em segundos.

O corredor terminava no topo de uma escadaria de madeira, que dava acesso ao refeitório dos operários. Naquele momento, cerca de oito horas da noite, não menos que uns cinqüenta homens jantavam, ao mesmo tempo em que conversavam animadamente. As imagens daqueles peões comendo lá em baixo, na maior algazarra, nos fez parar instintivamente. E a nossa presença no alto da escada produziu reação semelhante, ou seja, todos pararam de comer e falar e ficaram nos olhando. Por alguns segundos, não se ouvia nenhum ruído, a não ser o do motor da velha geladeira comercial, instalada a um canto do amplo salão. A mão de Márjorie, de tão suada, tornou-se escorregadia, a ponto de eu não conseguir mantê-la dentro da minha mão fechada. Olhei em volta, e não vi mais o homem que nos trouxera até ali.

Em dado momento, um dos peões cochichou com os companheiros de sua mesa, e estes desataram a rir. O riso deles foi contagiando os demais, e em pouco tempo todos riam. Um riso nervoso, meio caricatural, um tanto forçado da parte de alguns, foi evoluindo... evoluindo... até explodir numa gargalhada uníssona, estrepitosa. Estávamos petrificados e assim permanecemos, mesmo quando alguns operários, levantando-se, caminharam lentamente em nossa direção. Enquanto venciam cada um dos degraus, comecei a imaginar o que iria acontecer. Eles tentariam estuprar a minha Márjorie, e eu – diferentemente do levita que entregou a sua mulher aos homens de Gibeá (Juízes 19.22-28) – tentaria impedir que isto acontecesse, mesmo com o sacrifício da própria vida.

De repente, o melhor de mim, que se dispunha a morrer em defesa da mulher amada, entrou em luta contra um sentimento mesquinho, segundo o qual não valeria a pena o sacrifício. Afinal, minha morte não iria demovê-los dos seus maus intentos, e ela sofreria muito mais, quando tudo acabasse, se não pudesse contar com o meu apoio moral e psicológico, tão necessário à superação do trauma. Imobilizado como estava, acredito que só interiormente eu tenha sacudido a cabeça, para espantar esses pensamentos. Mas não o consegui. E se por acaso ela gostasse de ser violentada? Quem sabe se toda aquela sensualidade, que eu via como algo natural em Márjorie, não escondia um desejo latente de ser penetrada por vários homens, numa noite de orgia?

Lembro-me que engoli em seco, quando percebi que alguns deles já haviam alcançado o degrau imediatamente inferior ao patamar em que estávamos. Márjorie conseguiu quebrar a nossa imobilidade, correndo para trás de mim, buscando proteger-se. Pensei em recorrer a um argumento tolo: lembrá-los de que sexo após as refeições costuma ser fatal, mas desisti, com uma ponta de vergonha pela idéia ridícula. Um deles me empurrou violentamente para um lado, me desequilibrando. Ao cair no chão, deixei Márjorie completamente exposta. E logo, o que me empurrou segurou seu queixo com força, trazendo-a para junto de si, ao mesmo tempo em que se preparava para beijá-la. Antes que sua boca tocasse os lábios dela, levantei-me, parti pra cima dele e vi, com espanto, que ele se transformara em outro homem.

Creio que a transfiguração tenha provocado em mim um estado de confusão mental, que não me deixava mais discernir quem era quem, em meio àquela balbúrdia. Mesmo assim, vi quando dois deles tomaram Márjorie pelos pulsos e tornozelos e começaram a descer a escada. Tentei romper a barreira que os demais peões formaram para me interceptar, a fim de tirar minha mulher das mãos daqueles monstros. Mas, aí, ouvi alguém gritar: “Tá aqui a ‘zagaia! Tá aqui a ‘zagaia!” E abriram caminho, para que passasse um indivíduo, portando um instrumento metálico semelhante a um garfo de dois dentes, com cabo comprido de madeira. Ainda com a mente embotada, não saí do lugar, mesmo quando o agressor investiu contra o meu peito. O máximo que consegui, foi proteger a região torácica com as mãos, sendo ambas perfuradas pela arma pontiaguda.

Mal tive tempo de olhar minhas mãos ensangüentadas, quando um outro indivíduo tomou emprestada a ‘zagaia e cravou-a em meus dois pés, que ficaram presos ao chão. A força com que as pontas do bidente penetraram no soalho fez com que seu cabo reverberasse, dando-me sucessivas pancadas na testa e no nariz, que também começaram a sangrar. Em seguida, fui deixado só, no patamar, e todos desceram para o refeitório, onde Márjorie era preparada para servir de repasto sexual àquela turba ensandecida. Difícil descrever a angústia de ver a minha amada jogada sobre uma das mesas, se debatendo para evitar que a despissem. Tentei desprender a arma do chão, para liberar meus pés, mas os ferimentos das mãos impediam. Além da dor excessiva, o sangue tornava o cabo de madeira escorregadio.

Um outro homem emergiu daquele festim medieval e veio a mim. Olhou-me detidamente com expressão piedosa, sacudiu a cabeça para ambos os lados e disse: “Isto não se faz”. Na seqüência, despregou a ‘zagaia do chão, soltando os meus pés. Ainda em silêncio, mostrou-me com um gesto a outra extremidade do cabo da arma, também pontiaguda. Ato contínuo, cravou aquele estoque no meu lado esquerdo, sob as costelas, tornou a fincar o bidente no soalho e voltou para junto dos seus companheiros.

Fiquei alguns instantes por ali, observando meu corpo estrepado naquele pau de ponta pra cima. Um grito lancinante (que reconheci como sendo emitido por Márjorie) cortou o ar. Comecei, então, a forçar o cabo da ‘zagaia para baixo, ao mesmo tempo em que impulsionava meu corpo para o alto. Com espanto, verifiquei que as mãos já não doíam, o que facilitou a tarefa de desprender-me daquele estoque. Uma vez livre, me inteirei do que se passava no refeitório. Aglomerados em volta da mesa, os peões cantavam e batiam palmas, num clima festivo:

“...Ó Inácio, ó Inácio

pois se comê ela morre

ó Inácio, ó Inácio

e seu filho ela não cria.

Mas se não fosse os homi

as muleres não paria...”

Não, eu não queria acreditar no que meus olhos viam, mas era a pura verdade. Em meio àquela farra, aquele tributo à barbárie, à selvageria, Márjori levantou-se e pôs-se a dançar, nua sobre a mesa, para o gáudio dos insensatos, que a aplaudiam freneticamente. No primeiro momento, ela estava de costas para mim, rebolando as ancas empinadas e girando a calcinha enfiada no dedo

indicador da mão direita. Depois, girou sobre os pés descalços, exibindo um frontal de causar impacto, em razão do brilho que emanava do seu corpo, através de cinco estrelas, assim dispostas: duas sobre os olhos, outras duas sobre os mamilos e a maior delas cobria-lhe a vagina. “Ah, menos mal – pensei -, pois assim esses devassos não têm o prazer de apreciar a sua nudez completa”.

Do patamar onde eu estava, tentei dizer algo para a minha mulher, mas não conseguia emitir nenhum som, por mais que as palavras se formassem em minha boca. E mesmo que eu conseguisse falar, seria ouvido naquele ambiente estrepitoso? Mais ainda: ocupada como estava em entreter aqueles abutres, ela estaria a fim de me escutar? Difícil saber. Mesmo assim, continuei tentando, até que consegui bradar seu nome com tal volume de voz, que não só me fiz ouvir, como impus o mais completo silêncio ao local. Desci as escadas correndo ao encontro de Márjorie e ajudei-a a descer da mesa. Ela estava inteiramente vestida, com a mesma roupa, aliás, que estivera durante toda a viagem. Abraçamo-nos e beijamo-nos longamente, aproveitando a ausência de terceiros, pois o refeitório estava vazio. A bem da verdade, quase vazio, pois, ao virarmo-nos deparamos com Raimundo ao pé da escada. Ao seu lado, um enorme caldeirão, e com a mão estendida ele nos oferecia duas canecas de suco de caju, geladíssimo.

A primeira caneca, bebemos quase que de um só fôlego; a segunda e a terceira, mais lentamente; às duas últimas, nos declaramos satisfeitos. Raimundo sorriu e, em silêncio, retomou o caminho que nos levaria de volta à rua, tendo sempre o cuidado de trancar cada porta por onde passávamos. Uma vez fora da empresa, vimos que tudo estava exatamente como havíamos deixado. Os homens conversando à porta da birosca, os três caminhões estacionados em fila indiana, os cinco meninos brincando e as nossas mochilas encostadas ao muro. Quando passamos pelos meninos, percebi que nos olhavam com ar zombeteiro, e ouvi dois deles fazerem comentários acerca dos peitos de Márjorie, tendo o mais velho falado, entre dentes: “Eu é que se dei melhor, tava bem na priquita”.

De posse da nossa bagagem, demos início à caminhada de retorno à rodovia. Não foram necessários muitos passos, para que nos embrenhássemos na escuridão, saindo do alcance da visão de todos. Porém, mesmo à distância, dava para ouvir os meninos cantando:

“...Ó Inácio, ó Inácio

e o seu filho ela não cria.

Se não fosse as muleres

Os homi não fazia...”.

Abril de 2003