quinta-feira, 23 de junho de 2011



Perdeu, mais velho

Para Adilson Viana (Xará), Alex Brazil, Angélica Cavalcanti, Betinho da Moca, Cássia Ferreira, Dornelles, Ednaldo Santos, Eduardo Silva de Souza, Gordack, Marco Bomfim, Nelsinho Pacheco, Ricardo Villa Verde, Robert Sachsse, Sara Mazuco, Sérgio Buá, Sil Freitas e todos os boêmios e boêmias, que sabem captar o verdadeiro sentido da noite.

Ele já sabia de tudo... ou quase tudo. Tinha ouvido falarmuito e lido em jornais e revistas daqui e de fora. Além disso, nas últimas semanas havia se debruçado horas seguidas sobre o computador, pesquisando insistentemente na internet. Logo, a violência do Rio de Janeiro não era novidade pra ele.

Depois, quem iria mexer com um homem público de prestígio internacional, tão bem relacionado com figuras proeminentes do Brasil e do exterior?Um ato de violência contra ele – imaginava – seria um golpe contundente nas instituições. O sistema econômico ocidental, que tanto deve a ele, certamente se pronunciaria. “Isto, se a ONU não impuser sanções contra o país de origem do agressor” – voou na imaginação.

Já chegou ao Rio com o roteiro traçado. Primeiro passaria por Vargem Grande e outras áreas nobres de Jacarepaguá.Dali, seguiria para Barra da Tijuca, passando pelo Recreio e São Conrado; desceria a Niemeyer, sairia no Leblon e, então, visitaria os endereços nobres da Zona Sul, incluindo Laranjeiras e Cosme Velho.

Mas o roteiro não parava por aí. Examinando a agenda, constatou que tinha amigos, também, em algumas áreas da Tijuca, até o Grajaú. Pelo menos, era o que estava impresso em cor azul, no mapa da cidade. Em vermelho, tinham algumas zonas que deveria evitar – se possível, até – de passar por perto. Era uma tal de Rocinha e um tal de Vidigal; Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Maré, Macacos, Alemão, Guararapes, Serro-Corá... “My God,thise names are horrible!” – pensou em inglês, embora soubesse pensar em português, diferentemente de certas apresentadoras da TV brasileira.

Estava ainda cumprindo a primeira parte do programa: chegou à Barra. Quando alcançou a Avenida das Américas, o seu Rolex marcava duas e vinte da madrugada. O transito estava ótimo. Poucos carros na pista em direção à Zona Sul. Dava até pra seguir voando baixo, como pareciam estar, aliás, todos os poucos veículos que trafegavam por ali, àquela hora. E seguia, bon vivent, aproveitando aquela brisa, que lhe acariciava as faces coradas. Pareceu-lhe até que ouvia o som de uma canção, vindo de algum condomínio ao longe, cuja letra citava sua pessoa. Mas não deu muita atenção, porque, agora, passava por um trecho ermo da avenida, como outros que já havia ultrapassado, entre um conjunto de prédios e outro.

A certa altura, viu que oito carros estavam bloqueando as duas pistas, quatro de cada lado. Olhando melhor, percebeu que vários homens armados interceptavam o caminho. Já de longe, notou que dois deles tomaram a dianteira e, com as mãos, mandavam que parasse. Ele obedeceu, estacionando o seu veículo num recuo, cerca de 20 metros antes deles. Vários se encaminharam em sua direção, sempre apontando as armas.

Ficou mais tranqüilo, quando, observando seus trajes, viu que se tratava de uma guarnição da Polícia Federal, realizando uma blitz. Como não tinha nada a temer, desceu e riu pra eles o seu riso habitual.

- E então, rapazes, como vão as coisas? – perguntou, sacudindo a barriga.

Sem nada responder, todos os homens se acercaram dele e uma voz soturna anunciou:

- Perdeu, mais velho! Perdeu!

Ficou meio sem graça com a resposta, mas, ainda assim, falou em tom amigável:

- Bem, rapazes, vamos deixar de troça. Estamos todos a serviço da comunidade...

Não completou a frase, pois um berro sinistro ordenou:

- Cala a boca, coroa!

Ele calou, sem saber direito o que pensar. A mesma voz soturna foi direto ao assunto:

- Aí, coroa, me dá aqui a mão.

No que ele deu, o cara disse:

- Pra começar, vai perder o relógio.

Ao arrancá-lo do seu pulso, comentou com os parceiros mais próximos:

- Hum! É Rolex... legítimo. Eu sempre disse que esse velhote marcava um troco responsa – sorriu.

Enquanto isso, alguns deles passaram a bisbilhotar o seu veículo e até examinar nas mãos alguns objetos. Interrogado, outro respondeu:

- Muita muamba!.. Muamba da boa!..

Tentou relaxar, a fim de explicar a importância de cada uma daquelas coisas.

- Bem, eu não sei se vocês sabem, eu sou...

Splaft! A mão espalmada soou, deixando o seu rosto mais vermelho que de costume.

- Eu sei quem é você, sim, seu escroto. Só nunca tinha te visto assim, tão de perto – tornou a voz sinistra.

Lembrando do famigerado jeitinho brasileiro, ensaiou uma negociação.

- Olhe aqui, eu posso lhes dar a metade de tudo o que está aí e prometo não dizer nada a ninguém.

O dono da voz sinistra segurou-o pelo colarinho branco e, trazendo-o para junto de si, falou, respingando saliva em seu nariz:

- Tu ta de sacanagem, porra. Presta atenção, otário: pra que a gente quer essa merda de metade, se a gente tem a muamba toda na nossa mão? – e soltou-o com um empurrão contra o seu veículo.

A sinistra deu o comando:

- Vamos levar a porra toda.

Mas a soturna replicou:

- Esse velho é safado. Ele é capaz de dedurar a gente. Vamos deixar ele nu.

Achou que era demais e reagiu, pela primeira vez com firmeza:

- Aí, não. Vocês não podem fazer isso comigo... eu represento uma instituição...

E de novo foi interrompido pelo de voz sinistra, que lhe encostou o cano de uma pistola na cabeça.

- Deixa de falar merda, mais velho. Aí, tirem a roupa dele.

Sem mais forças e argumentos, cedeu. Lhe despiram dos pés à cabeça e entrouxaram suas vestes. Em vão pediu que lhe deixassem a cueca. E rapidamente ocuparam os veículos, inclusive o dele, saindo em disparada, cada grupo em direções opostas, cantando pneu, voando baixo.

Ele não tinha palavras – e eu também não tenho – para expressar o seu desapontamento. A cabeça rodava... os pensamentos se embaralhavam... Julgou ser necessário recorrer às leis brasileiras de proteção aos animais. Só que descartou a idéia. “Ora, se não protegem as pessoas!..”. Pensou! Pensou no que deveria fazer primeiro: sair dali o mais rápido possível. Mas, sair como? Assim, descalço até o pescoço? O que vão dizer as pessoas de bem, quando isso for divulgado na mídia? É, não tinha dúvida de que a mídia iria explorar o assunto com sensacionalismo. Afinal, ele era um grande vulto da moderna história ocidental e, agora, naquele estado: nu e despojado de seu veículo e de toda a mercadoria que trazia nele. Sim, porque sua imagem era conhecida em diversos países, mesmo naqueles que não visitava. Seu nome, pronunciado em muitos idiomas. Não se sabe até hoje porque ainda não virou marca patenteada pela Rede Globo, assim como o Criança Esperança.

- O que vão dizer as pessoas de bem, quando souberem disso? – refletiu.

Ah, as pessoas de bem! Quantas delas se mobilizariam, em diversos quadrantes do planeta, para ajudá-lo naquela hora de aflição?

Olhou em volta e teve a noção exata do quanto era ermo o trecho da Avenida das Américas, em que se achava. Quis sair à procura de um local mais movimentado, a fim de conseguir uma carona até a Delegacia. Mas desistiu, achando que seria melhor não expor tão completamente a sua nudez.

Vem um carro. Respirou profundamente aliviado e se posicionou bem à beira da pista, para que lhe vissem melhor. Mas como fazer sinal pro motorista, se estava com as mãos cruzadas sobre a genitália, como ficam os jogadores de futebol, na hora da cobrança de falta? O jeito foi ficar dando pulinhos no mesmo lugar, sinalizando que precisava de ajuda.

O carro conduzia duas jovens, tendo uma delas comentado:

- Você viu o que eu vi?

- Acho que vi, sim. Um velho maluco pulando sem roupa, escondendo o piru atrás das mãos?

Disse a primeira:

- Coitado, com aquela barriga, nem precisava usar as mãos pra esconder a coisa. A própria pança se encarregaria disso.

- Até porque, nem deve ser um piru – respondeu a outra. É, no máximo, um filhotinho de canarinho polaco. – riram muito.

Outro carro despontou. Ele não queria perder a oportunidade de ser visto. Desta vez, postou-se no centro da pista e abriu os braços, com tudo a mostra. Num golpe de direção, tão ágil quanto certeiro e arriscado, o motorista desviou-se dele, imprimiu mais velocidade ao veículo e saiu, cantando pneu, voando baixo.

Os ocupantes do carro formavam um casal bem posto na vida que, católicos fervorosos, se empenhavam, vez por outra, em zelar pela moral e os bons costumes, além de honrar as tradições. Ela comentou:

- Os criminosos estão sempre mudando suas táticas. Agora, que sabem que os menores já não comovem tanto, estão usando os idosos, naturalmente com problemas mentais, para nos fazer parar.

Ele nada disse à mulher, mas não se furtou a dizer tudo a uns PMs, que encontrou pouco mais adiante. Não demorou muito chegou uma guarnição, comandada por um sargento, à frente de um cabo e três soldados. Desceram da viatura e o comandante perguntou-lhe:

- O que é que tá pegando aí, meu chefe?

A vítima ficou na dúvida, se começaria pela narração dos fatos ou pela revelação da sua identidade. Ficou com a segunda opção e assim se apresentou aos policiais:

- Não sei se vocês já perceberam, mas eu sou Papai Noel... sim, eu sou Papai Noel e acabo de ser assaltado. Perdi meu trenó, com seis parelhas de renas, e mais: relógios, brinquedos, celulares e...

O cana não quis ouvir mais nada. Segurou-o pela barba branca e esbravejou:

- Tá pensando o que, coroa? Só porque já é terceira idade, pensa que pode zoar com a cara da polícia? Nessa época do ano, tem uma porrada de desocupados, assim como você, descolando uma prata com essa história, aqui nos shoppings da Barra.

Ele protestou:

- Não, senhor. Eu sou o autêntico. Os outros são uma representação de mim... uns impostores. Eu tenho documentos que comprovam isso. O meu passaporte...

- Onde está seu passaporte? – quis saber a autoridade.

- Pois é, os ladrões levaram junto com as minhas roupas.

O sargento, ainda agarrado à barba dele, sacudiu várias vezes a sua cabeça, pra um lado e pra outro.

- Escuta aqui, velhote safado, vou lhe conduzir à DP e tu vai contar essa história, lá pro delegado. Mas vou logo te avisando: tu vai ser recolhido aos costumes e autuado por atentado ao pudor.

Ir para a Delegacia era, talvez, a melhor coisa a fazer. Lá, falaria de suas origens e de sua descendência direta da linhagem de São Nicolau Taumaturgo, que teve início em Mira, na Turquia, onde ele foi arcebispo, durante o século 4. Aproveitaria a ocasião, para registrar a ocorrência... mas aí o sargento soltou sua barba e ordenou a um soldado:

- Abre lá a caçapa, pra jogar esse puto velho.

Na mesma hora, um outro soldado pegou-o pelo braço, levando-o para mais próximo da traseira da viatura. Mais uma vez ele esboçou um protesto:

- Vocês não podem fazer isso. Estão cometendo um equívoco, uma injustiça...

O cabo berrou:

- Cala a boca, filho da puta, e obedece ao sargento.

Aberta a porta da caçapa, ele viu o espaço exíguo que abrigaria o seu corpo volumoso. Com muito esforço, se encolheu o mais que pode para entrar. Ficou encalhado, impedindo que a porta fechasse completamente. Sempre gritando impropérios, o sargento decidiu “ajudá-lo”: com a coronha do fuzil socou seu corpo pra dentro, em três movimentos bruscos. A cada um deles, o velho gritava de dor:

- Hôôôôôô!.. Hôôôôôô!.. Hôôôôôô!..

23/11/2010

Eldemar de Souza